A historiografia brasileira é cheia de paradoxos. Complexos de inferioridade e síndromes de catástrofe envolvem a cultura nacional.
Episódio que marca bem essas incoerências foi o da transformação do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, em herói nacional, um século depois da sua execução na forca (1789), por conspirar contra a corte portuguesa.
Até 1890, Tiradentes era apenas um mestiço pobre, oficial subalterno – alferes corresponderia hoje a 2º tenente -, um falastrão inculto que complicou a vida de poetas, doutores e sacerdotes como Thomaz Antonio Gonzaga, Ignácio Alvarenga Peixoto e Cláudio Manoel da Costa, membros da maçonaria. Acontece que a República, recém-instaurada, precisava de um novo conjunto de símbolos e mitos.
Tiradentes, o “feriadão”
Zarcillo Barbosa
O autor é jornalista e articulista do JC
19/04/15 07:00 / JC – Opinião
Era preciso reescrever a história do País, criar uma nova memória, que encontrasse agora motivos republicanos. Os únicos que tínhamos provinham da família real, banida do País com a extinção da monarquia e o exílio de Pedro II.
Os novos dirigentes começaram a imitar a simbologia da matriz francesa, com a figura de uma mulher representando a República, a exemplo de Marianne, a jovem de túnica e gorro frígio de Delacroix.
Uma evidente alegoria com noções de liberdade, felicidade e fertilidade maternas, na versão positivista. O hino conservou a melodia imperial. A bandeira sequer mudou as cores dos Bragança e dos Habsburgo, com nova explicação: o verde das nossas matas, o amarelo das nossas riquezas minerais e o céu sempre azul dos trópicos.
O povo necessitava de algo mais “autêntico”. Os artistas foram chamados para dar feição ao herói. A orientação dos intelectuais foi a de compará-lo a Jesus, de barba e cabelos longos, túnica branca, olhar perdido no horizonte. Não poderiam faltar referências ao traidor, o Judas da Inconfidência Joaquim Silvério dos Reis, responsável pela derrota do movimento e pela condenação do herói-mártir.
O pintor Pedro Américo, o mesmo do quadro Independência ou Morte, dessa vez construiu a cena em tela de Tiradentes esquartejado. Percebe-se como o exercício da manipulação simbólica não é aleatório. Naquela época a palavra marketing nem havia sido criada, como significado de técnica persuasiva. Mas, os franceses estavam fazendo escola, na arte de explorar o imaginário coletivo.
Machado de Assis, no dia 22 de maio de 1892, comenta com ironia em “A Semana”, o novo herói da República. “Não será possível imaginar que, se não fosse a indiscrição de Tiradentes, que causou o seu suplício, e dos outros , o que teria sido do projeto (dos inconfidentes)”.
Caso tivesse dado certo a expulsão dos portugueses, o alferes ficaria longe das benesses do novo regime. Mas, o sangue do precursor bradava por um Messias, que do planalto mineiro, como Cristo no Sermão da Montanha, pregasse a todo o povo brasileiro o novo testamento da República.
Machado de Assis descreve com bom humor a mudança do vocabulário. Em vez de chamar os membros da elite de coronel, comendador, barão, todos, à época, procuram o politicamente correto: preferem o título de “cidadão”, – o citoyen da La Marseillaise.
A considerar: não existe História neutra. Nela, a memória afetiva relacionada com o passado, intervém e determina boa parte dos caminhos. A lição é de Eric Hobsbawm, um pensador de esquerda. “A figura do herói torna-se de extrema importância para a personificação da nação.” Herói é herói, e ponto final. Discutir seu papel é pôr em questão a Pátria, por vezes a Religião, as Forças Armadas, o Partido. Deodoro, Benjamin Constant, Frei Caneca, e Felipe dos Santos não estavam dando conta do ideal republicano. Tiradentes foi a saída. Lutou pela libertação da nação, com o sacrifício da própria vida.
E com uma vantagem: só derrubou o próprio sangue. Portanto, nem mágoa deixou. Getúlio Vargas, em 1936, também embarca nessa “tradição inventada” (ainda, Hobsbawm). Manda repatriar os “ossos patrióticos” dos inconfidentes que morreram degredados na África. O ditador joga pétalas de rosas sobre as urnas mortuárias , na chegada ao Rio de Janeiro.
Humberto Castello Branco, em 1964 nomeia Tiradentes “Patrono da Nação” e impõe, por decreto, que o herói tenha sempre a mesma fisionomia caracteristicamente judaica do enforcado, igual ao da estátua defronte ao Palácio Tiradentes, no Rio.
Geisel, em 1976, revogou essa exigência para deixar o rosto do mártir ao bel prazer dos artistas.
Zumbi, do Quilombo dos Palmares, começa a aparecer como herói-étnico para quebrar a hegemonia dos mineiros.
Um contraponto a Juscelino que escolheu o dia 21 de abril para inaugurar Brasília.
Mais uma figura no álbum das representações didáticas dos manuais escolares.



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